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A África Sudânica na História do Continente


Kerma ao sul do Egipto antigo, no Vale do Nilo, definia-se,em primeiro lugar, como sendo o primeiro estado negro da região sudânica em que a figura do monarca era tida como sendo uma entidade revestida de atributos divinos, enquanto o próprio conceito da divindade admitia graus de perfeição absoluta e intermédia, sem excluir o poder de intervenção de uma longa linha de antepassados. Dizíamos na conversa passada que iríamos falar do Sudão, e que iríamos começar no princípio, para dizer a falar do reino de Kerma no Vale do Nilo. Por uma razão grande, não há maneira de falar do Sudão no coração da África Sahariana sem atravessar as influências nilóticas nesta parte norte-centro do nosso Continente.

Para dizer a verdade o debate aqui é cerrado, tanto sobre o que se sabe, como o que se suspeita a respeito de quais terão sido ao longo dos séculos as influências do Vale do Nilo na zona sahariana. Não pretendemos aderir ao debate dos estudiosos desta parte da nossa história que dizem saber muito mais do que as suas provas, uma ladainha. Razão esta também por que estamos a falar do Vale do Nilo, e não do Egipto, propriamente dito, senão de forma indirecta, por uma razão óbvia: a primeira, a saber que esta história do Sudão Sahariano se bem que tanto quanto se sabe resultado preponderante dos eventos que ao longo dos séculos configuraram a Bacia do Nilo ao sul do Egipto, a historia do Sudão é também produto das influencias seculares vindas das orlas do Grande Deserto Sahariano mais ao norte - das zonas florestais e lacustrinas viradas para os Grandes Lagos Africanos; por ultimo e não menos importante também produto das transformações operadas na região que dizemos aqui da África Atlântica, a partir sobretudo do estado sudânico, outrora conhecido por Kanem-Bornu. É rica esta história do Sudão Sahariano, cheia como um ovo, dizíamos que falta penetrar.

Esta é a história da fronteira dos quatro compassos do epicentro norte-sahariano. Mas o que foi e porque Kerma?

Kerma não foi o estado mais famoso alinhado ao longo do Vale do Nilo que tenha influenciado em directo e em grande escala, a história do Sudão Sahariano, mas ainda assim, Kerma foi a testa da ponte dos estados que no passado fizeram a história da Bacia Nilotica, Nepata, Meroe, Alodia, Makurria, Alwa, na região que Egipcios, Gregos e Romanos chamavam de Kush -ou Nubia - a região onde mais tarde, em pleno século dezoito, desta era surgiram os estados sucessores: Funj de Senar, Darfur e Kordofan, da história corrente, o Kordofan que foi propriamente terra de ninguém; de Darfur ou de Senar, mas motivo de lutas intermitentes entre estes dois, tal um manancial inesgotável de escravos que sempre tinha sido.

Entre o muito do que se podia dizer a propósito aqui, é que Kerma tem tido a particularidade de ter sido o primeiro estado centralizado do Vale do Nilo. Para dizer tudo, Kerma foi o primeiro estado negro de que há memória no Continente, sem dúvida estado negro, sem o pejorativo semântico de sempre que esta expressão insinua.

Na história do Sudão Sahariano, a eliminação deste conceito seria a negação da sua realidade. Negro é aqui, na história do Sudão Sahariano, parte do problema, parte da solução ”sicut erat in principio” desde o principio. Não é este um acto de alinhamento intelectual com a escola egiptologista de Anta Diop, Obenga, Van Sertima, Davidson e outros sem rejeitar todavia a realidade de Kerma ter-se formado à sombra das realidades históricas do Egipto - no Vale do Nilo - Egipto de que aliás Kerma foi colónia.

Neste pedestal, Kerma preenche outro qualificativo na história nilo-sahariana, de modelo primevo de estado, que os africanistas chamam de sudânico, estado sudânico, onde a figura do rei é sagrada, onde a ideia da divindade admite graus de perfeição entre o absoluto e o intermédio, e onde a sombra dos antepassados tem momentos de intervenção na vida dos presentes, para o bem, para o mal, onde a realidade da classe social se torna numa das zonas estruturais da definição do estado, o que se torna patente quando morre o rei - o monarca defunto - que tem a prerrogativa de ser acompanhados no séquito da morte por elementos das classes mais baixas do reino, membros da nobreza menor, escravos, inimigos vencidos na guerra, e algumas das suas esposas, a quem se atira a sorte de acompanharem o marido defunto para lhe fazerem companhia noutra vida, e mais bens materiais que lhes possam faltar no além túmulo.

Mas Kerma foi muito mais do que um modelo estrutural prístino de estado sudânico na história nilo-sahariana.Voltaremos.

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