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Guiné-Bissau: Prática Ancestral Reacende Debate Nacional


Enraizada, sobretudo, entre as etnias islamizadas em África, estima-se que a mutilação genital feminina afecte entre um a dois milhões de mulheres e crianças em pelo menos 28 países do continente africano, incluindo a Guiné- Bissau, país onde um activismo em prol da criminalizado dessa prática cultural ancestral entre os muçulmanos nas áreas rurais, acabou por contribuir para a clarificação da fronteira entre o que se deve entender por tradição cultural e o que é crueldade.

Activistas sociais, políticos, legisladores e governantes guineenses, incluindo uma ex-governante guineense, de etnia Fula, entretanto excisada quando criança, participam na abordagem desta problemática na nossa rubrica ´´Temas e Debates´´.

O debate acerca da circuncisão feminina é relativamente recente na Guiné- Bissau. Dataç do início do ano 2000 os primeiros pronunciamentos públicos contra esta prática, enraizada sobretudo entre as etnias islamizadas e nas áreas rurais do país.

No Parlamento, há já três anos que uma proposta de legislação destinada a penalização da prática da excisão feminina aguarda que seja, no mínimo, agendada para debate

Entre as sucessivas situações de instabilidade político-social vividas no país, aliadas à polémica que o diploma em si suscita, a criminalização da mutilação genital feminina vai, entretanto, aguardando por melhores dias.

Em causa, apontam os críticos da postura displicente dos deputados guineenses, está a abolição de uma prática cultural ancestral, ainda que nefasta, mas enraizada entre um grupo que representa nada menos que 40 por cento da população total do país e, consequentemente, de uma franja imprescindível do eleitorado nacional.

Esta é, pelo menos, a convicção de Fatumata Djau Balde, activista do movimento pró-abolição da pratica de mutilação genital feminina na Guiné- Bissau.

A ex-ministra da Solidariedade Social, Fatumata Baldé - ela própria vítima da excisão feminina - enquanto criança - não hesita em identificar na base da indecisão da casa parlamentar guineense, factores políticos definitivamente alheios às consequências de tais práticas na saúde das mulheres.

“Os muçulmanos constituem cerca de 46 por cento da população total guineense, por conseguinte um eleitorado de peso. Em muitas circunstancias, quando os nossos políticos se referem a esta problemática e a necessidade de aprovação de uma lei que criminalize a sua prática, preferem aborda-la na sua perspectiva política, quando na verdade e minha opinião as consequências nefastas desta pratica na saúde das mulheres guineenses e que deveria sobressair no debate.”

Francisco Benante, presidente da Assembleia Nacional Popular do país, prefere encarar o debate de um outro prisma. Para aquele legislador guineense, muito mais do que legislar, há que ter em conta a sensibilidade das populações seguidoras de tais práticas.

“A demora nada tem a haver com o eventual aproveitamento político que se poderia fazer do caso. Podemos criar e aprovar as leis que entendermos. Para se punir uma pessoa é preciso que essa pessoa tenha a consciência de que violou uma regra. Daí que se justifique que a eventual aprovação de uma legislação na matéria seja precedida por uma ampla campanha de sensibilização das nossas populações, sobretudo as praticantes desse ritual, para que a ela tenha aplicabilidade. Não se pode aprovar uma lei que leve as pessoas a pensarem tratar-se de uma imposição do poder legislativo.“

O compasso de espera do Parlamento quanto à aprovação de legislação que faça da prática da mutilação genital feminina um delito criminal justificado pelo presidente da ANP com a necessidade de promoção de uma ampla e profunda campanha de sensibilização das populações para com problemática, por forma a que barreiras culturais sejam superadas.

Diga-se que este é um argumento com ressonância a nível das autoridades governamentais do país e, em particular, na ministra da Solidariedade Social, Adelina Tamba, que sugere como oportuna toda a precaução possível na abordagem da questão.

“Há uma sensibilidade para a questão, por parte dos nossos deputados e políticos. Dos seminários e debates sobre a problemática realizados no país, os nossos parlamentares têm marcado presença. Só que, por se tratar de uma prática cultural ancestral, há que se lidar com o caso com muita prudência, para não termos que ferir susceptibilidades na nossa sociedade. “

O certo é que, enquanto perdurar a indecisão dos legisladores guineenses,na matéria, a mutilação genital feminina, vai engrossando e de forma impune, o número de vítimas, crianças do sexo feminino das sociedades rurais guineenses.

De acordo com a opinião de alguns juristas, a prática é considerada à luz de qualquer código criminal que preveja punições para casos de ofensas corporais, como um delito criminal. Contudo, a falta de vontade para a aplicação desta interpretação do código criminal, faz com que prevaleça a ideia da necessidade de leis específicas na matéria.

“Na realidade, pelo facto do ritual constituir uma violação dos Direitos Humanos e constituir uma ofensa corporal, justificaria a punição dos seus praticantes, independente de qualquer outra legislação especifica”- frisa Fatumata Djau Baldé, activista guineense pró-abolição da mutilação genital feminina no país.

A nível da sociedade civil e envolvendo voluntários e activistas , alguns projectos inspirados no combate desta prática ancestral teem vindo a dar resultados consideráveis, conquistando inclusive uma certa notoriedade além fronteiras.

E o caso das iniciativas da organização não governamental, Sinim Mira Nassique, que encontrou formas de preservar a tradição cultural, desprendida, entretanto, da sua componente brutal.

Imagens do ritual do “Fanado Modelo”, uma alternativa encontrada por aquela ONG local, ao rito de iniciação ancestral, em que jovens raparigas são aceites como purificadas, sem, no entanto, terem que se submeter a mutilações de partes íntimas do seu corpo, correram mundo e acabaram por despertar a atenção mundial para a saga das mulheres guineenses que se batem pelo abolição de tais práticas.

No ano passado, a ONG portuguesa Intercooperação e Desenvolvimento, a INDE, a operar na Guiné-Bissau, em áreas diversas, nomeadamente no desenvolvimento comunitário, foi protagonista de um movimento que culminou com a entrega ao Parlamento de uma petição com mais de quatro mil assinaturas de personalidades da sociedade civil local, constatarias da prática da excisão feminina.

Mas, é sobretudo a nível dos meios rurais e nas sociedades islamizadas que a interpretação das sequelas da excisão feminina, na saúde das mulheres encontra as mais férreas resistências.

Quem o confirma são as próprias activistas das campanhas de sensibilização implementadas nas áreas rurais do país.

“É, portanto, irrealista referirmo-nos a estas crenças como barbáries, nefastas ou crueldades. Porque não é essa a percepção que as populações das áreas rurais, delas têm. Nas campanhas , tentamos sensibilizá-los para as consequências da prática na saúde das mulheres e crianças, de que o Islão não prevê essa prática de mutilação corporal da mulher, embora a maioria dos líderes religiosos islâmicos guineenses, tenham opinião contraria.. Daí ser mais fácil trabalhar esta problemática a nível dos jovens...” realça Elsa Santiago, responsável local da ONG portuguesa, INDE que não esconde a convicção de que mudanças substanciais só serão prováveis de ocorrer com a melhoria do estatuto das mulheres na sociedade guineense.

Entretanto, do governo começam a ser visíveis, apesar de tímidos, os primeiros sinais de demonstração de abertura a uma abordagem mais descomplexada e ousada da problemática.

Recentemente, o conselho de ministros instruiu os ministérios da Solidariedade Social e da Saúde a preparem um conjunto de diplomas a ser submetidos ao Parlamento, que consubstanciem a eventual criminalização da mutilação genital feminina.

Para já, esta é uma iniciativa saudada, mas ao mesmo tempo encarada com um certo cepticismo pelos activistas das campanhas nacionais pró-abolição dessa prática ancestral.

E o caso de Elsa Santiago do INDE, que prefere aguardar pelos resultados concretos dessa suposta determinação das autoridades nacionais em fazer frente a realidade, antes de soltar os foguetes.

“A sensibilidade das autoridades guineenses quanto a problemática não e objectiva. Apesar de certas individualidades no governo serem contra a mutilacao genital feminina, raras vezes exprimem publicamente o que pensam a propósito. Não há ,por assim dizer, uma abertura na abordagem da questão.”- recalca Elsa Santiago que chama, entretanto, a atenção para as consequências das constantes convulsões políticas sociais vividas no país, no adiamento de um debate nacional sobre a problemática.

Um pouco mais optimista , Fatumata Djau Baldé, prefere encarar positivamente os recentes sinais dados pelo governo guineense que, entretanto, interpreta como resultado da intensa pressão exercida pelos activistas.

“Foi com satisfação que ouvi reproduzida, há bem poucos dias pela comunicação social, a decisão do governo de orientar as ministras da Solidariedade Social e da Saúde, por sinal áreas da governação tuteladas por mulheres a preparem um projecto de legislação na matéria.”- conclui Fatoumata Djau Baldé.

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