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Ruanda e o genocidio - 2004-03-30


Localizado no cimo da uma colina, tendo pela frente quilómetros de terra arável que cerca a vila de Bisesero, um memorial em forma de uma pequena palhota de folha lembra uma das piores atrocidades cometidas na história moderna.

Dentro, Antoine Sebiroro, de 30 anos, olha tristemente o crânio limpo de um dos seus 25 familiares, cujos restos ali repousam. O crânio está colocado ao lado de outros crânios e ossos de mais de 50 mil outros Tutsis, mortos na área de Sebiroro por extremistas hutus, durante uma operação de mais de três meses e meio, já lá vão 10 anos.

A sua voz, quebra com emoção, e ele diz que mesmo dez anos depois a memória daqueles meses de horror continua viva na sua mente.

Não há palavras que possam descrever como me sinto, diz Sebiroro. Diz que a tristeza que sente sempre que olha os crânios das pessoas que em tempos conheceu e amou é simplesmente esmagadora.

Sebiroro foi um dos 10 mil tutsis que vivia na vila de Biserero, quando as tensões étnicas ruandesas, há muito existentes, entre a maioria Hutu e a minoria Tutsi explodiu em violência horrorosa a 7 de Abril de 1994.

Um dia antes, o avião que transportava o presidente ruandeês, o hutu Juvenal Habyarimana, foi abatido perto da capital, Kigali. Os extremistas hutus no governo acusaram os rebeldes tutsi que se opunham ao regime de Habyarimana e pediram aos seus apoiantes para matarem Tutsis e hutus moderados no Ruanda.

Na vila de Bisereo, 160 quilómetros a sudoeste de Kigali, tutsis alarmados começaram a formar um grupo de resistência. Outros tutsis na região começaram a chegar a Biserero, procurando ali refúgio e para se juntarem à resistência. Nos primeiros dias de Maio, desse ano, a população tutsi na vila tinha aumentado para 50 mil.

Armados com pedras e lanças, o grupo de resistência Tutsi conseguiu, durante um mês, defender-se contra numerosos ataques de extremistas hutus. Mas o grupo acabaria por não ser capaz de defender-se dos hutus munidos de machetes e armas, e nos finais de Junho apenas mil e 500 estavam vivos em Biserero.

Anastase Kalisa, de 31 anos, sobreviveu escondendo-se e conseguindo fugir aos atacantes. Mas ele testemunhou a morte de centenas de pessoas, incluindo os pais, mortos a tiro, decepados ou queimados vivos. Ele diz que continua a ter pesadelos que receia nunca irão desaparecer.

Kalisa diz que sonha com frequência que está com o pai, a ser perseguido pelas milícias hutu a brandirem as suas machetes.

Os sobreviventes Tutsi não são os únicos traumatizados pelo genocídio no Ruanda. Muitos hutus dizem que também eles sofrem imenso.

Num dos bairros pobres de Kigali, Thadeo Harerimana, de 55 anos de idade, abre uma porta de metal amachucada e mostra com orgulho a sua delpidade casa.

Ele diz que a casa parece estragada, mas para ele é um palácio, comparada com a cela de prisão apinhada e suja, que durante nove anos partilhou com dezenas de outros homens, acusados de participarem no genocídio.

Harerimana diz ter sido preso no princípio de 1995, meses depois do exército rebelde tutsi, comandado pelo actual presidente Paul Kagame, ter derrotado os extremistas hutus e tomado o poder no Ruanda. Harerimana diz que os responsáveis do novo governo acusaram-no de ter ligações com o anterior regime hutu e de possuir uma arma que usara para matar Tutsis.

Harerimana ficou na prisão, à espera de ser julgado pelos seus alegados crimes, juntamente com cerca de 100 mil suspeitos de genocídio. Mas o número enorme de suspeitos começou a interferir com o sistema judicial ruandês, e a abrandar o seu funcionamento.

Desesperados por reduzir o congestionamento prisional e acelerar a reconciliação nacional, o governo ruandês adoptou um programa de amnistia que encorajou os hutus, que poderiam ter desempenhado um papel menor no genocídio, a confessar a troco da liberdade. No ano passado, cerca de 25 mil prisioneiros foram libertados ao abrigo deste programa.

Harerimana confessou e foi libertado no sábado passado. Como muitos dos libertados, tem agora que comparecer perante o tradicional tribunal da vila. Os chamados tribunais oferecem aos acusados uma possibilidade de pedirem perdão e voltarem a fazer parte da sociedade.

Mas Harerimana diz saber que há milhares de inocentes hutus nas prisões acusados de crimes bem mais graves do que aquele que ele faz face, e que não podem desfrutar da amnistia porque recusam confessar por crimes que não cometeram, mas que não conseguem provar a sua inocência.

Segundo ele há muitos assassinos que depois do genocídio fugiram e estão agora a viver livremente em vilas ruandesas.

De regresso a Bisereo, Antoine Sebiroro diz que apesar de não poder provar, sabe que há vários hutus, a viver na sua comunidade, que participaram no genocídio, mas que não tem escolha a não ser viver ao lado deles, pois o governo proibiu actos de vingança ou a segregação ao longo de linhas étnicas.

Sebiroro nota que muitos extremistas hutu ainda não mostraram remorso pelos crimes que cometeram e que a sua falta de remorso tem prejudicado os esforços de reconciliação. Não se pode perdoar quem não pede perdão, afirmou Sebiroro.

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