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“Acredita que, ainda assim, vieram nos prender?”


Laurinda Gouveia
Laurinda Gouveia

Laurinda Gouveia fala sobre a luta não violenta dos centraleiros

Eliza Capai e Natália Viana, Agência Pública de Jornalismo Investigativo

Através dos centraleiros, conhecemos Laurinda Gouveia, uma notável e bonita “rapariga” que preferiu estudar filosofia a buscar alguma profissão que lhe tirasse da vida de vendedora de churrasquinho e sucos na rua, que partilhava com a tia. Ela também agia como “repórter cívica” durante as manifestações e participava dos encontros de leitura do livro de Gene Sharp. “Era um grupo de estudo, de debates. E mesmo assim – apesar de ser uma coisa inofensiva, porque nós não fazíamos nada de mau e porque a nossa opção foi mesmo a luta não violenta – acredita que, ainda assim, vieram nos prender?”

O problema, diz Laurinda, é que depois de quatro anos de mobilização online e nas ruas, o movimento “revu”, ou revolucionário, como são conhecidos os jovens que contestam o regime, chegara a um impasse. As manifestações, que têm de ser autorizadas, eram sempre proibidas pelas autoridades; os jovens iam às ruas assim mesmo, mas em número cada vez menor. Pelo menos três vezes mais policiais os recebiam a pancadas. Foi por isso que o grupo decidiu estudar as táticas de Gene Sharp, o que ocorria todos os sábados. Discutiam, além de Sharp, as estratégias de Gandhi, Mandela, Luther King. “Eu penso que precisamos parar um bocadinho. Não quer dizer ficar indiferente com as coisas. Precisamos refletir o que a gente quer”, diz ela. “Para mim, acho que nas eleições não vamos conseguir nada. Eu não acredito nas eleições pela máquina que é o MPLA. A exemplo disso, meu caso, eu vivo aqui em Luanda e muitas das vezes, quando é hora de votar, o meu nome sai nas províncias, onde eu nasci.”

Laurinda nos deu uma longa entrevista em um sábado no Elinga, um vibrante centro cultural numa casa antiga que está condenada por todos os lados: na frente, um gigantesco prédio ergue-se para sediar o que deverá ser o maior shopping center em Luanda, onde executivos que desfrutam o único setor realmente bem-sucedido da economia angolana – o petróleo – poderão desfrutar o sábado à tarde sem pôr a cara na rua. Diante da magnitude da “modernização” de Luanda, o Elinga vai virar estacionamento. Mas era lá que, ainda em agosto deste ano, os jovens rappers conseguiam organizar seus shows e palestras públicas. Naquele sábado, o debate seria transmitido por live streaming. Nele, outros jovens assumiram publicamente que participavam do grupo de estudos, respondendo a perguntas do jornalista Rafael Marques.

Laurinda ficou famosa nacionalmente no final do ano passado. Foi detida quando filmava uma pequeníssima manifestação, de apenas sete pessoas, com seu celular. Após uma sessão de espancamento que durou cerca de duas horas, decidiu, com muito receio, exibir suas feridas na internet. Não queria expor “partes íntimas” – as coxas, as costas – marcadas pelos canos de metal dos policiais. Depois disso, foi expulsa de casa, depois de muito pedirem os parentes para que ela abandonasse o ativismo. Vivem com medo.

Documentário 'É proibido falar em Angola' - Bloco 1
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“No dia 23 de novembro, decidimos fazer uma manifestação. E como sempre o [partido] MPLA criou uma contramanifestação, encontramos jovens vestidos com t-shirts do MPLA e tudo mais… Quando era mais ou menos 16 horas, já não tinha tanto policiamento, nós decidimos entrar no largo. Os policiais vieram logo com porrete e começaram a bater. Eu peguei o telefone e comecei a retratar aquilo. Assim que eles se deram conta, os manos fugiram, e eles vieram todos contra mim. O telefone eles levaram, e eu ia atravessando pro outro lado, foi assim quando veio um agente da Sinse [serviço secreto], pegou-me pelo braço e alguns comandantes vieram e começaram a puxar: ‘A senhora vai pra esquadra!’ [delegacia]. Pegaram-me no cabelo, a puxarem no braço, na perna. E fomos, eu sempre a chorar e a pedir socorro, foi assim que eu vi que não estavam me levando à esquadra. Algemaram-me. Ainda tava lúcida, vi que eram gente da polícia e gente da Sinse. Eles pegaram-me, começaram a bater-me ainda algemada, com porrete, com pau de vassoura, a dar-me mesmo na perna, em toda parte. Foi assim que apareceu um dos comandantes. Falei: ‘Tio, por favor, desculpa!’. Ele deu-me um soco nos olhos. Eu a pedir sempre desculpa, desculpa, mas ele a ofender-me. ‘Não, nós já avisamos, vocês não ouvem… E por isso hoje vais ter que se mijar nas nossas mãos!’ Eu me mijei, ainda tava algemada, mijei-me.”

Ao contar sua história, a bonita jovem afasta os olhos da câmera. Alguns policiais, diz, tentaram convencê-la a virar informante. “Mas olha, Laurinda, deixa de se meter com esses jovens, olha você até não quis colaborar conosco, não quer começar a colaborar conosco…? Vamos te dar um serviço, até pode namorar com um de nós, tem pessoas aqui em condições.” Disseram a ela que, por ser mulher, o melhor que fazia era pensar em casar, ter uma casa. “Até olha, depois dessa surra que nós te demos, tu já não vais fazer filhos!”

A mesma proposta foi feita, acrescida de alguns milhares de dólares, a outro jovem que conhecemos no Elinga. Era próximo dos dois rapazes assassinados em 2013. Com os dois, conta, rejeitou uma proposta de suborno para deixar de exigir indenizações a 2 mil membros da Casa de Segurança do presidente, para o qual ele trabalhava. Foram todos demitidos sumariamente em 2010, sem indenização.

Vivo, Mário Faustino parece estar morto por dentro. Em maio deste ano, quando participava de mais uma manifestação, foi preso durante três meses; passou 20 dias numa solitária. “Hoje entrei na cadeia, saí da cadeia, ando muito adoentado! Eu não sei o quê que fizeram comigo… Eu sinto o peito. Tem uma dor, tipo, como se tivesse uma ferida lá dentro. Também muita febre. O meu corpo até não é… sou só um homem grande. Eu de cada dia que passa estou a emagrecer. Isso está a me matar aos poucos”, diz, apagado na voz. Além da tortura e de ter sido preso sem nenhuma acusação, Mário carrega consigo um papel amassado, um “termo de identidade” feito pela polícia que atesta que ele não pode sair de Luanda. Constantemente, diz ele, é seguido por homens “me tirando imagem”: “Eu tenho uma vida de terror”.

Confira o terceiro episódio da reportagem especial "Medo e Controle em Angola" em: http://bit.ly/1jufCtd

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